A área dos Jogos Digitais continua a crescer em Portugal e atrai cada vez mais talentos. Nos últimos anos, foram surgindo formações nesta área, mas o Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (IPCA) tem “o único curso de Engenharia de Jogos Digitais” do país, como realça o diretor desta Licenciatura, Duarte Duque.
O Guia das Profissões esteve à conversa com o diretor da Licenciatura em Engenharia e Desenvolvimento de Jogos Digitais do IPCA para saber como funciona esta formação, qual o perfil do aluno ideal, que tipo de competências ensina e o que se pode esperar em termos de emprego.
Fica, desde já, com a ideia de que “é uma boa aposta em termos de futuro profissional”. Mas continua a ler, ou vê o vídeo, para saber tudo.
“Único curso de Engenharia de Jogos Digitais” em Portugal
Guia das Profissões – A área dos Jogos Digitais é bastante promissora e está em amplo crescimento. Assim, podemos dizer que a Licenciatura em Engenharia e Desenvolvimento de Jogos Digitais do IPCA é uma boa aposta em termos de futuro profissional?
Duarte Duque – Sim, creio que sim. Quando iniciamos esta Licenciatura, em 2009, nessa altura, era algo ainda novo em Portugal. Fomos os pioneiros e causava alguma estranheza. Tínhamos potenciais candidatos e pais preocupados com o futuro. Com o passar dos anos, viu-se, também pelos resultados que temos conseguido e pelas pessoas que temos formado e pelo seu sucesso, que é de facto uma área promissora.
Guia das Profissões – Entretanto, atualmente, há vários cursos nesta área…
Duarte Duque – Mas ainda continua a ser o único curso de Engenharia de Jogos Digitais. Isto aporta aqui um outro conjunto de competências que tem um nível mais profundo, quer do ponto de vista técnico, quer da programação – portanto, das áreas da Engenharia – que não limitam alguém que tira este curso apenas à área dos jogos…
“Criação de Jogos Digitais envolve várias profissões”
Guia das Profissões – O que faz exatamente um Engenheiro de Jogos Digitais? É o mesmo que um criador de jogos?
Duarte Duque – Ele cria jogos, mas faz parte de uma equipa. A criação de Jogos Digitais envolve várias profissões. Por exemplo, temos pessoas que escrevem guiões para os jogos. Depois temos a parte da programação, uma das áreas em que somos muito fortes.
Guia das Profissões – Mas como é que tudo isso funciona, interligando as várias áreas?
Duarte Duque – Tipicamente, usamos um motor de jogo sobre o qual são criadas todas as mecânicas, são incorporados modelos 3D, ou imagens 2D, dependendo do tipo de jogo. Esses modelos, ou imagens, também são criados por profissionais desta área. Os nossos alunos têm também informação nessa área.
Guia das Profissões – Neste sentido, que tipo de valências é que o curso envolve?
Duarte Duque – Modelação 3D, animação de personagens, modelação de espaços…. Tem a componente do áudio, embeber vídeo ou sequências de vídeo nos videojogos, a comunicação em rede – os jogos, hoje em dia, já não se limitam a um computador, são multiplayer. Ensinamos todas essas valências na Licenciatura. Depois, para desenvolver um jogo, a pessoa encaixará numa destas áreas.
“Criatividade é essencial”, mas a Matemática também
Guia das Profissões – Qual é o perfil do aluno que escolhe esta Licenciatura? Que tipo de características deve ter para ser bem-sucedido? Devem ser pessoas mais criativas? Ou mais nerds da informática?
Duarte Duque – Primeiro, tem de gostar de jogos. Mas não é apenas gostar de jogar. É gostar de criar, de criar novos mundos, novas histórias, tentar inovar, estar sempre muito atento áquilo que é feito. Quando se joga um jogo, olhar para perceber porque é que eu uso esta mecânica, o que é esperado de mim como jogador…
Guia das Profissões – Mas também será preciso um interesse por áreas mais técnicas – e complexas…
Duarte Duque – Claro que também é preciso ter apetência pela programação e pelas áreas da Matemática e da Física. Porque, lá está, trata-se de uma Engenharia.
Guia das Profissões – Parece, de certa forma, um contrassenso – começou por falar da criatividade e depois da Matemática…
Duarte Duque – A Engenharia é arte e engenho.
Guia das Profissões – É verdade. E há programadores informáticos que dizem que, no seu trabalho, é preciso ser muito criativo.
Duarte Duque – Podemos ir à parte estrita da Matemática, da conceção de algoritmos… Mas aqui nos jogos, existe mesmo a parte criativa. E a Engenharia é aplicar ferramentas técnicas, mas de formas inovadoras, para resolver problemas. Portanto, a criatividade aqui é essencial.
Empresas de Jogos Digitais precisam de profissionais
Guia das Profissões – E como são as aulas? Há uma componente teórica forte, ou é uma licenciatura mais prática?
Duarte Duque – Depende. Maioritariamente, é prática. Desenhamos o curso para, em cada semestre, os alunos desenvolverem um conjunto de competências. Por exemplo, no primeiro semestre do primeiro ano, são, sobretudo, linguagens de programação, perceber alguns conceitos fundamentais no desenvolvimento de jogos, arte 2D… Mas ainda não começam a implementar os jogos. Depois, no segundo semestre, já dominam as linguagens de programação, já começam a implementar jogos 2D. E assim sucessivamente, até que, no terceiro ano, já desenvolvem projetos de grande envergadura, em grupo, que depois são apresentados em público – e, muitas vezes, já integrados em equipas de desenvolvimento de empresas.
Guia das Profissões – Portanto, já há um contacto com o mercado de trabalho, mesmo durante a Licenciatura…
Duarte Duque – Temos uma forma de colaboração com empresas que permite que estudantes nossos possam desenvolver, durante um semestre, um trabalho para uma empresa – e vir a ser creditado o resultado desse trabalho numa, ou em várias UCs [Unidades Curriculares]. E temos tido vários casos de sucesso.
Guia das Profissões – Isso ao longo do curso?
Duarte Duque – Sim. Tipicamente, no segundo ou terceiro ano, porque no primeiro ano, os alunos ainda estão muito “verdes”.
Há dificuldade em contratar
Guia das Profissões – É uma forma de motivar a familiarização com o mercado de trabalho…
Duarte Duque – É já um primeiro passo porque, muitas vezes, o que acontece é que as empresas precisam mesmo e não conseguem contratar estes recursos humanos. E isto já é uma forma de estabelecer uma relação com o aluno, ver se ele corresponde às expetativas da empresa – e também o contrário, o aluno ver se a empresa corresponde áquilo que ele quer para o seu futuro, se corresponde aos seus valores.
Guia das Profissões – E como é que tem corrido esse processo?
Duarte Duque – O que tem acontecido, felizmente, é que as duas coisas se “casam” e depois, a empresa oferece um contrato ao aluno e ele inicia aí a sua carreira profissional.
“Em Portugal, a indústria tem crescido bastante”
Guia das Profissões – Em termos de saídas profissionais, não parece haver problemas. Como tem sido a experiência dos alunos já formados? Conseguem encontrar trabalho em Portugal?
Duarte Duque – Consegue-se encontrar trabalho em Portugal. Mas também depende um pouco daquilo que os nossos alunos pretendem. Nem todos vão para os jogos. Alguns vão para empresas de programação. Outros vão para empresas de software, desenvolver produtos que precisem das competências da computação gráfica.
Guia das Profissões – O mercado dos videojogos em Portugal, mudou e cresceu muito nos últimos anos. Como é que podemos descrever o panorama atual?
Duarte Duque – Em Portugal, a indústria tem crescido bastante. Temos empresas portuguesas que foram crescendo e que foram absorvidas por multinacionais, consolidando aqui a sua posição e têm tido necessidades de recrutamento. Felizmente, temos tido essa colaboração com essas empresas e temos encaminhado para lá os nossos alunos. Mas também temos alunos que procuram outras latitudes e temos pessoas a trabalhar desde a Polónia até ao Canadá e aos EUA.
100 empresas portuguesas na área da Realidade Virtual
Guia das Profissões – Existem dados quanto ao número de videojogos que se estão a produzir em Portugal, atualmente?
Duarte Duque – Não tenho de cabeça esses números. Sei que existiam, em 2021, segundo um relatório que li recentemente, cerca de 100 empresas só na área de VR [Realidade Virtual]. Mas nem todas são de jogos. De jogos temos menos. Mas temos a Saber, a Redcatpig, a Nerd Monkeys…. Há uma série de empresas em Portugal a trabalhar.
Guia das Profissões – Estamos a falar de empresas cada vez mais “profissionais”, com estruturas mais robustas e mais sólidas também. Porque, inicialmente, assentavam mais na carolice, na paixão pelos videojogos.
Duarte Duque – É verdade. O mercado também cresceu, as pessoas fizeram as suas formações. Inicialmente, não existia esta formação sequer. Tivemos os pioneiros e alguns também trabalharam para empresas maiores no estrangeiro e absorveram esse know-how. Trouxeram os contactos e, portanto, as coisas estão a crescer de forma sustentada e com ligações a empresas maiores. Trabalha-se já a um nível bastante profissional, não amador.
Gamificação “está em tudo”
Guia das Profissões – Atualmente, fala-se muito da gamificação aplicada aos mais diversos setores. Isso abre ainda mais oportunidades aos alunos da Licenciatura?
Duarte Duque – Esta interface mais intuitiva, esta interação, está em tudo. O mais comum é pensarmos em videojogos para o entretenimento, mas temos também o uso militar na simulação. Se criarmos cenários virtuais, podemos testar e treinar as pessoas.
Guia das Profissões – Mas também tem aplicação na área da saúde, por exemplo…
Duarte Duque – Podemos usar aplicações interativas para treinar os profissionais de saúde. Temos projetos na área da reabilitação em que, em vez de ser uma recuperação como se faz nas clínicas de fisioterapia, é um jogo que as pessoas fazem mais porque estão a jogar. São incentivadas a jogar! Até se abstraem. Temos também aplicações que estão a ser desenvolvidas com a VR para ajudar no tratamento da esquizofrenia, com definição de tarefas que as pessoas têm de fazer. Podemos criar todos estes mundos e colocar as pessoas em ambientes controlados, mais seguros, e assim apoiar o seu tratamento.
Guia das Profissões – A área da Educação é outro setor onde a gamificação tem muito potencial.
Duarte Duque – Na Educação, podemos ter conteúdos interativos – em vez de ter apenas um livro, algo 2D, estático, podemos ter a possibilidade de passar para outra dimensão e ter partes dos conteúdos que são interativas, multimédia, que permitem uma maior compreensão das matérias. Também no imobiliário e na arquitetura, podemos ter visitas virtuais a imóveis, testar o uso de um edifício ainda antes de estar construído… Todas estas áreas têm necessidade de profissionais que nós formamos.
Vê como ser Programador de Videojogos
Investigação em “Jogos Sérios” e Game Jams
Guia das Profissões – Voltando ao curso em si, para além das aulas, os alunos são incentivados a aprenderem de outras formas? Que tipo de possibilidades lhes fornece a escola nesse sentido?
Duarte Duque – Todos os anos organizamos uma Game Jam [um encontro de desenvolvedores de jogos]. Durante 48 horas, os participantes desenvolvem um jogo. Tipicamente, é um evento que começa numa sexta-feira à tarde e termina no domingo à tarde. Ninguém sabe qual é o tema. Na sessão de abertura, damos o tópico, o tema, para a Game Jam e começa aí o brainstorming.
Guia das Profissões – E é só para os alunos? Ou qualquer pessoa pode participar?
Duarte Duque – Qualquer pessoa pode inscrever-se. Podem inscrever-se em grupo, ou isoladamente, e depois tentamos encaixá-las num grupo de acordo com o perfil, se é mais da área do design, se é mais da programação…. É algo que já fazemos há vários anos e há aqui uma ligação entre várias instituições, e isso também é bastante positivo.
“Troca de experiências e experimentação”
Guia das Profissões – E estes jogos desenvolvidos nas Game Jams, acabam por ter algum futuro?
Duarte Duque – As Game Jams são, sobretudo, um ponto de troca de experiências, para as pessoas se conhecerem, para se testarem, sem receios. Quando estamos no meio académico, temos de cumprir com aqueles objetivos para ser avaliados. Quando estamos numa empresa, temos de gerir custos e, portanto, não podemos arriscar em determinado tipo de projetos em que até teríamos interesse, mas não sabemos se o mercado aceitaria. As Game Jams são um palco para experimentação. Não se espera, em si, um produto que se vá vender.
Guia das Profissões – Há outros projetos no IPCA que podem ajudar os alunos a enriquecerem os seus conhecimentos?
Duarte Duque – Temos no nosso Centro de Investigação, o 2Ai (Applied Artifical Intelligence Laboratory), vários projetos na área dos Jogos Sérios [usados em áreas como a Saúde, a Educação e a Defesa, entre outras] e tentamos cativar os nossos alunos, para que consigam também ter uma progressão na investigação – até para depois transitarem para mestrado porque também temos um mestrado na mesma área.
“Complexidade” de criar videojogos pode surpreender
Guia das Profissões – O que é que motiva mais os estudantes a escolherem esta opção? As saídas profissionais? O interesse por jogos?
Duarte Duque – Neste curso em concreto, é sobretudo o gosto pelos videojogos. Claro que, sendo uma Engenharia, também têm de ser pessoas com uma apetência para a programação e com interesse nessa área. Mas sobretudo, o interesse por videojogos, gostar de criar estas experiências e, no fundo, a ideia de tentarem desenvolver os seus próprios projetos quando terminarem o curso.
Guia das Profissões – Nesse sentido, quando os jovens seguem a sua paixão, o que é que os pode surpreender mais quando começam este curso?
Duarte Duque – Sobretudo a complexidade que envolve a criação de um videojogo. Muitos deles chegam com a ideia de que é fácil criar um jogo que as editoras “triple A“, as editoras de topo, fazem, com gráficos super irrealistas. Mas depois percebem, ao longo do percurso académico, que isso envolve centenas de pessoas e todas com muitas skills que demoraram a treinar. Portanto, vão aprendendo várias competências, várias funções dentro de uma empresa, e depois, alguns vão-se especializando mais numa área ou noutra.
Guia das Profissões – Estamos a falar de que tipo de áreas?
Duarte Duque – Temos pessoas que têm mais interesse na área da modelação 3D e, portanto, têm mais acompanhamento desses professores que depois até orientam para formações que podem fazer após o término da Licenciatura, e aconselham na carreira. Há pessoas que querem mais a parte da formação de ferramentas para modeladores gráficos. Portanto, depende. São muitas áreas.
“É um curso muito técnico”
Guia das Profissões – E qual é o maior desafio que este curso apresenta aos jovens? Será esse embate de frente com a realidade?
Duarte Duque – Sim, penso que sim. Mas, hoje em dia, acabam por estar um bocadinho mais resilientes. Quando o curso começou, no primeiro ano tivemos uma taxa de desistências muito grande. As pessoas não sabiam o que era. Entravam com a ilusão de que vinham aprender a dar ideias para jogos! Mas depois tivemos o cuidado, na divulgação, de explicar exatamente o que é o curso. É muito técnico e quem nos procura já vem um pouco com essa ideia. Claro que não sabe exatamente aquilo que vai encontrar. Mas nós temos turmas pequenas e acompanhamos os alunos, e sempre que eles têm dificuldades, tentamos que as ultrapassem com sucesso.
Explosão de jogos digitais é bom sinal
Guia das Profissões – A evolução tecnológica facilitou muito o processo de desenvolvimento de jogos – em teoria, qualquer pessoa pode criar e publicar o seu próprio jogo nas plataformas online. Isso é uma boa, ou uma má notícia para quem pretende fazer carreira nesta área?
Duarte Duque – Não é um problema. Há sempre milhares de jogos a serem publicados todos os dias. Mas nem todos chegam ao nosso conhecimento. Porque depois, a nível empresarial, há uma máquina de marketing que tem de ser alimentada. Eu posso ter um jogo muito bom – o melhor jogo do mundo! – que é cativante, mas se não chegar ao conhecimento das pessoas, ninguém vai jogar. Não vai ser um sucesso, vai ser um fracasso. E não é pelo jogo. É porque não se investiu em publicidade. E só empresas bem estabelecidas é que têm essa capacidade de divulgação do seu produto.
Guia das Profissões – Portanto, essa “explosão” de jogos não é uma má notícia para futuros Engenheiros nesta área?
Duarte Duque – Existirem muitos jogos a serem lançados é bom, quer dizer que o mercado está a despontar, está a trabalhar. Há projetos que nascem e que morrem. Há projetos que vingam e se tornam maiores. É o normal do mercado. Mas é uma boa notícia que haja ebulição.
“É preciso gostar de aprender e de criar”
Guia das Profissões – Para terminar, gostaria de deixar alguma mensagem a jovens que estejam na dúvida sobre se devem, ou não, seguir este curso?
Duarte Duque – Quando faço a divulgação do curso, gosto sempre que as pessoas estejam cientes de que para fazer o desenvolvimento de jogos digitais, não basta apenas gostar de jogar. É preciso gostar de aprender porque todos os dias estão a aparecer novas tecnologias e nós temos de estar sempre atualizados. É gostar de aprender e gostar de criar coisas novas e experiências únicas. Se gostarem disso, então, a Engenharia de Desenvolvimento em Jogos Digitais pode ser uma opção.